quinta-feira, 8 de abril de 2010

Antes do Seio

Antes do seio era um deserto enorme, um vazio absoluto, um nada. Tudo era vasto, árido, duro, rochoso, inóspito. Antes do seio o ar era rarefeito, não havia vento, nem ipês amarelos, nem unhas à francesa, nem sorvete de mamão papaia com creme de cassis, nem beijo de prima, nem menina descalça, nem o aroma fresco da hortelã. Antes do seio Clarice Lispector não escrevia, Géraldine Chaplin não atuava, Bob Dylan não compunha, Ferreira Gullar não era. Antes do seio a vida era estéril, profundamente estéril, completamente estéril. Tudo era um cemitério pleno, um morredouro de sensações. Era apenas pele sobre ossos, carpete fino sobre concreto frio, certidão de casamento. Antes do seio a vida fingia que existia. E nos enganava. Mas houve um dia uma expansão inesperada e a carne se contraiu furiosamente e depois expulsou a febre. E a febre resfelou na pele, rindo, e as fontes começaram a jorrar e o sangue correu mais quente e as sobrancelhas se eriçaram. O seio enfim brotou nos corpos inertes e multiplicou o sentir, fecundou as almas, inventou a arte, consolidou a vida. Nunca mais seríamos os mesmos de antes. Do seio.

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